quarta-feira, 17 de abril de 2024

Dowbor expõe os novos aspectos do rentismo

 Pressão permanente por ampliar ganho dos acionistas leva corporações a devastar e precarizar. Lógica degradou a internet, onde agora pouco se cria ou colabora – pois às Big Techs interessam a disputa, o conflito e… a impotência social

 Duas diretrizes principais estruturam o sistema de gestão empresarial: maximização e competição. A maximização está centrada nos resultados financeiros e, para obter resultados, você deve superar os demais. Pode-se alegar adesão aos ESG, mas o verdadeiro jogo é sobre maximização e guerra econômica, quaisquer que sejam os custos. O que precisamos é de outro paradigma, baseado no crescimento equilibrado e na colaboração. A gestão precisa ser fundamentada em valores.

(Ladislau Dowbor)

 Manolito, não é verdade que existem outros valores, além do dinheiro? Manolito: Claro que existem, também temos cheques.

(Quino, Mafalda)

 Nesta nova era em rede, o paradigma tradicional da concorrência precisa de dar lugar à complementaridade, à conectividade e à cooperação.

(Keyu Jin, pág. 282) 1

 Dowbor expõe os novos aspectos do rentismo

Outras Palavras, por Ladislau Dowbor - 16.04.24

 Os modelos de gestão no mundo corporativo são estruturados para maximizar resultados, e estes são definidos como meta principal, lucros financeiros e dividendos. Alguns chamam isso de otimização e parece bom. Os resultados também devem ser alcançados no menor tempo possível, prendendo o mundo corporativo numa corrida permanente. Os resultados sistêmicos e de longo prazo são mantidos fora do horizonte do processo de decisão e os impactos em maior escala são qualificados como “externalidades”, lavando as mãos das empresas. Um exemplo clássico é a reação da indústria de armas de fogo às críticas: produzimos armas, mas não puxamos o gatilho. Outro exemplo interessante é o da indústria de alimentos ultraprocessados: seria responsabilidade do consumidor ler os rótulos e proteger sua saúde. Na verdade, isto levou a outra indústria em expansão, a resposta farmacêutica à explosão da obesidade. Assim, temos duas indústrias em expansão, uma que produz alimentos ruins, a outra que produz remédios, e pagamos por ambas. Produzir alimentos saudáveis ​​poderia ser uma escolha melhor, mas não no interesse da maximização dos lucros, quer nos setores alimentar, quer no setor farmacêutico.

 A concorrência na época de Adam Smith poderia parecer boa e até continuar positiva nas pequenas e médias empresas. Uma padaria tem que produzir bom pão a preços razoáveis, ou outra padaria aparecerá. Mas se uma empresa produtora de chocolate na Bélgica conseguir comprar cacau mais barato no Gana, fechando os olhos ao trabalho infantil, o concorrente responsável que respeita alguns direitos humanos básicos será ultrapassado. Se uma empresa da indústria de carne bovina na Europa conseguir um acordo melhor com a JBS no Brasil, quaisquer que sejam os custos externos para o Cerrado ou a Amazônia, isso forçará os concorrentes a recorrer a práticas semelhantes, para não serem superados. Quando um algoritmo da Pfizer fixa o preço do Paxlovid, comprimido para tratamento da covid-19, em 1.390 dólares, enquanto o custo de produção, segundo uma pesquisa da Universidade de Harvard, é de 13 dólares, está apenas calculando que os muito ricos pagarão qualquer coisa pela sua saúde, e este é o preço ideal em termos de maximização de lucro. Não se trata de maximizar o impacto na saúde, vender o produto com lucro razoável e torná-lo acessível a muitos.

 O estudo de Max Fisher sobre o impacto social, econômico e político dos meios de comunicação social deixa as questões evidentes. Facebook, YouTube e algumas plataformas semelhantes são basicamente empresas de marketing, vendendo nosso tempo de atenção para corporações. O marketing, por exemplo, representa 98% do faturamento da Meta. As taxas de marketing dependem de quantas pessoas são alcançadas, por quanto tempo e de outros critérios de “engajamento”. Como os algoritmos são estruturados para maximizar o engajamento, o que chega ao topo é o que atinge mais profundamente nossas entranhas, não o interesse intelectual ou cultural, a empatia ou a colaboração, mas motivações poderosas como o ódio, a confirmação do preconceito, o sentimento de pertencimento (“nós” contra “eles”) e outras emoções que maximizam a atenção. A profundidade disso pode ser vista em tantos conflitos e polarizações políticas absurdas ampliadas radicalmente pelas mídias sociais. O livro de Fisher é corretamente intitulado The Chaos Machine (em tradução livre, A Máquina do Caos).

 A legítima otimização do lucro pelo padeiro da época de Adam Smith, quando inserido em algoritmos na era da revolução digital, com conectividade global e vieses de confirmação de epidemias, tem impactos negativos dramáticos. Não se trata de sermos “bons” ou “maus”, trata-se de ampliar instintos poderosos que existem em todos nós. Tendemos a esquecer que ainda somos fundamentalmente primatas, com grande inteligência, sem dúvida, mas com motivações profundamente problemáticas em relação à finalidade para a qual utilizamos essa inteligência. Somos parcialmente racionais, mas a capacidade cerebral acrescida não eliminou as motivações mais profundas que herdamos. O estudo de Frans de Waal sobre Nosso Macaco Interior mostra isso muito claramente. É assim que somos feitos, em nosso DNA. As plataformas de comunicação podem aproveitar essas emoções, e usar a tecnologia moderna para maximizar o comportamento dos primatas é simplesmente errado.

 As mensagens do Facebook chegam a quase 4 bilhões, com horas de atenção, e têm custos radicalmente reduzidos em comparação com os anúncios de jornal que já tivemos. Somos apenas alimentados, e superalimentados, com mensagens tóxicas ajustadas individualmente. Anúncios e mensagens simplesmente colam nos seus olhos e filtram no fundo, gostemos ou não. 2

 Lembremo-nos de que estas são as principais corporações mundiais, vender o nosso tempo de atenção é o grande negócio do presente. Também aqui a maximização funciona de mãos dadas com a concorrência: se uma empresa utiliza este tipo de manipulação de envolvimento emocional, outras vão segui-la, porque funciona, e estão lutando pela mesma mercadoria, o nosso tempo de atenção pessoal. Que é, na verdade, o momento das nossas vidas, o nosso capital pessoal mais precioso. Robert Reich resume: “Aqueles que procuram a nossa atenção – anunciantes, profissionais de marketing e políticos – enfrentam uma concorrência crescente para agarrá-la. Quando conseguem, nossa atenção se desvia de todo o resto. É por isso que a atenção está se tornando um recurso tão escasso.” 3

 O sistema bancário brasileiro é outro exemplo rico. Neste caso, não se trata de competição, mas de conluio. Cinco bancos controlam 85% do crédito e cobram aproximadamente as mesmas taxas de juros extorsivas para famílias, empresas ou eventos sobre a dívida pública. Os juros da dívida de particulares durante 2023 oscilaram em torno de 55%, para uma inflação de cerca de 4%. Isto levou a uma fuga financeira para as famílias, equivalente a 10% do PIB, reduzindo drasticamente o poder de compra e, consequentemente, o estímulo da procura à economia. A taxa de juro média das empresas ronda os 23%, o que levou a uma redução do investimento produtivo. Para quem tem capital, tendo em conta que a procura está estagnada e as taxas de juro muito elevadas, se precisar de apoio financeiro, simplesmente optará por investir na dívida pública, pagando 8% líquido de inflação. Lucro sólido, sem risco, sem esforços de produção. Quando a renda financeira paga mais do que o investimento produtivo, é para lá que vai o dinheiro. Isto é simplesmente matar o ganso, com maximização a curto prazo. A economia está estagnada. 4

 Não se trata de altos e baixos do mercado. É um sistema estruturado de extração de renda. Uma dimensão é a desinformação. Antes de 1994, o Brasil enfrentava hiperinflação, atingindo mais de 50% ao mês. Isso levou os bancos a apresentarem taxas de juros mensais. A hiperinflação foi reduzida, mas os bancos continuam a apresentar taxas de juro todos os meses, o que as torna semelhantes às taxas de juro anuais do resto do mundo. A taxa de juros de 100% será apresentada, nos bancos ou no comércio, como 6%, ou preferencialmente 5,9%. As pessoas pensariam que as coisas não poderiam ser tão simples: seria uma usura escandalosa. No entanto, isto é precisamente o que acontece, ao estilo do Mercador de Veneza, num país onde muito poucas pessoas sabem calcular o equivalente anual a uma taxa de juro mensal. Todos os bancos do Brasil, inclusive os internacionais, como o Santander, utilizam esse esquema. Temos 72 milhões de adultos na lista de incumprimento de crédito, cerca de metade da população adulta.

 O Banco Central não deveria regular esse sistema de usura? Na Constituição de 1988, o artigo 192 estipulava que juros reais acima de 12% ao ano seriam considerados crime. Em 2003, com a entrada do recém-eleito Lula no governo, os bancos conseguiram eliminar o artigo 192. A usura, atualmente, não é crime, nem sequer é mencionada como questão legal. E o Banco Central, mais recentemente, foi declarado autônomo, colocado de facto nas mãos dos bancos e do sistema financeiro. O que levou a que a dívida pública pagasse as taxas de juro mais elevadas do mundo, basicamente ao mesmo sistema financeiro. Em 2023, a correspondente drenagem do orçamento atingiu o equivalente a 7% do PIB. O dreno financeiro improdutivo global que apresentei numa audiência do Congresso em Brasília é equivalente a 30% do PIB. Como grande parte dos congressistas tem forte investimento financeiro e, portanto, quer manter as taxas de juros tão altas quanto possível, isso se tornou uma deformação estrutural. É um drama para a economia e para a sociedade, mas é politicamente sólido. Até que ponto a democracia pode resistir quando a desigualdade atinge níveis absurdos?

 A drenagem dos recursos naturais é outro exemplo. A água é um bem público e está rapidamente se tornando um recurso escasso. O The Guardian nos traz comentários a respeito do Relatório sobre a Água Doce, mostrando o impacto da privatização: “Mais de 30 anos depois da privatização da água, com a urbanização generalizada e a intensificação agrícola, é necessária uma nova abordagem – incluindo uma potencial reforma dos reguladores da água –”, diz o relatório. “Com os níveis de confiança nas empresas de água afetados por repetidos relatórios de poluição e especulação, tanto o público como os profissionais da água querem mais transparência e garantia de que as empresas estão agindo no interesse da sociedade e do ambiente.” 5

  Apenas 14% dos rios no Reino Unido estão “em bom estado ecológico”. A lógica é simples: quando a gestão da água é privatizada, vender água é um bom negócio e o tratamento de esgotos é um custo. Enfrentamos problemas semelhantes em São Paulo, onde a Sabesp, empresa de gestão de água parcialmente privatizada, maximiza as vendas de água, mas mantém baixo o tratamento de esgotos. Paris mostrou o caminho, com a restauração da gestão pública de água e esgoto. Interesses equilibrados.

 Estes são apenas alguns exemplos. Mas o impacto geral é dramático. A Oxfam apresenta o impacto na sustentabilidade: “Desde 2020, os cinco homens mais ricos do mundo duplicaram as suas fortunas. Durante o mesmo período, quase cinco bilhões de pessoas em todo o mundo ficaram mais pobres. As dificuldades e a fome são uma realidade diária para muitas pessoas em todo o mundo. Ao ritmo atual, serão necessários 230 anos para acabar com a pobreza, mas poderemos ter o nosso primeiro trilionário em 10 anos. Uma enorme concentração do poder empresarial e monopolista global está exacerbando a desigualdade em toda a economia. Sete em cada dez das maiores empresas do mundo têm um CEO bilionário ou um bilionário como principal acionista. Por meio da pressão sobre os trabalhadores, da evasão fiscal, da privatização do Estado e do estímulo ao colapso climático, as empresas estão promovendo a desigualdade e agindo a serviço da entrega de uma riqueza cada vez maior aos seus proprietários ricos.” 6

 No Brasil, para uma população de 203 milhões de pessoas, temos 33 milhões passando fome e 125 milhões em insegurança alimentar. O que produzimos equivale a mais de quatro quilos de grãos por pessoa por dia. Não poderíamos pelo menos alimentar as crianças?

 Todos esses magnatas corporativos reivindicam a sua adesão aos princípios ESG, os principais políticos assinam as sucessivas resoluções da COP, a OCDE é severa na sua luta pelo BEPS, John Ruggie lutou durante uma década pelo respeito corporativo pelos direitos humanos, mas como ele próprio escreveu, “para corporações internacionais, são apenas negócios”. A verdade é que, a menos que as empresas se organizem eficazmente para o bem comum sistêmico e aprendam a colaborar, dado o seu poder global, as coisas não funcionarão. Estamos presos em um processo autodestrutivo. Até que ponto devemos entrar nesta crise econômica, social e ambiental crítica, até termos uma reação global? Fizemos isso depois da Segunda Guerra Mundial, criando um mínimo de governança global. Isso foi em outra época.

 É claro que podemos imaginar que fomos feitos à imagem de Deus. Stephen Jay Gould, em seu Wonderful Life, é mais pé no chão, lembrando-nos que somos “meros macacos nus que adotaram uma postura ereta”. Macacos nus de alta tecnologia. Eles não veem o que está acontecendo? Devemos aprender racionalmente como lidar com a irracionalidade. Entretanto, os políticos aprenderam a navegar com base nos nossos piores instintos. Funciona.

 Notas

1 Keyu Jin, The New China Playbook: Beyond Socialism and Capitalism , Viking, Nova York, 2023.
2 Pallavi Rao, Visualizing How Big Tech Companies Make Their Billions , Visual Capitalist, dezembro de 2023.
3 Robert Reich – Boletim informativo, Republicanos fazem afirmações selvagens sobre os perigos da imigração. Aqui está a verdade , The Guardian, 12 de janeiro de 2024.
4 L. Dowbor, The Age of Unproductive Capital: New Architectures of Power , Cambridge Scholars, 2019.
5 Sandra Laville, As ‘falhas’ conservadoras levaram a mais poluição de esgoto, dizem a água especialistas , The Guardian, 13 de janeiro de 2024.
Inequality Inc , Oxfam, 14 de janeiro de 2024.

 

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

Dados: o Norte global quer um novo Potosí

 Avança, na OMC, acordo que sujeita Estados e sociedades aos algoritmos das Big Techs e ao “livre” comércio de dados. Nova ameaça colonialista reduz países do Sul a produtores de matérias primas, num setor central para a economia do século XXI

Por Sofia Scasserra, na Revista Anfíbia | Tradução: Rôney Rodrigues

Desde 1998 estamos envolvidos no (mal)chamado programa de comércio eletrônico ou, como recentemente começou a ser chamado, de economia digital. O projeto materializou-se em 2017 na negociação de um Acordo sobre Comércio Eletrônico entre 88 vários países que decidiram fazer o que no jargão se chama de “iniciativa de declaração conjunta”. O texto avança na OMC (Organização Mundial do Comércio) e, se assinado, será vinculativo e executável para todos os membros.

Poucos sabem disso em detalhes. Permanece opaco por muitos atores políticos, especialistas em tecnologia, movimentos sociais e formuladores de políticas públicas. E representa, em suma, um verdadeiro problema para regular a indústria digital, para gerar uma inserção inteligente da Argentina nas cadeias globais de valor de produtos baseados em inteligência artificial e para garantir que a tecnologia esteja a serviço da sociedade com padrões verificáveis.

A matéria-prima

Para que algo seja matéria-deve existir uma indústria que lhe dê valor e o torne vendável de forma massiva no mercado. Os dados, então, são os principais produtos da indústria digital. Mas do que falamos quando falamos da indústria digital? Num processo industrial, uma matéria-prima heterogênea e dissimilar entra em uma fábrica, é processada até a obtenção de um produto homogêneo e idêntico, e são realizados controles de qualidade para que possa ser colocada de forma massiva no mercado. Este processo geral é aplicável a um pano, a um litro de óleo e até a um carro.

Os dados, nesse caso, entram na fábrica algorítmica: um maquinário treinado para transformá-los em informações facilmente vendáveis e muito valiosas para o mercado. Os controles de qualidade nada mais são do que o treinamento que lhes damos através da internet. Todos os dados que geramos tornam-se informações valiosas para as empresas: elas os utilizam para construir nossos perfis como consumidores. Quando aceitamos ou rejeitamos ofertas, quando dizemos que uma tradução está mal feita ou quando simplesmente ignoramos uma sugestão de publicação, estamos ajudando a verificar se as previsões feitas a nosso respeito são verdadeiras ou não. Depois que essas grandes empresas das indústrias digitais verificam as informações, elas as vendem no mercado para empresas menores que pagam para poder anunciar aos consumidores que desejam comprar seus produtos.

Esta indústria digital pode ser replicada nas mais diversas áreas: desde campanhas políticas, passando pela produção e logística de produtos, até à otimização na gestão dos trabalhadores. Estamos, cada vez mais, imersos nesta enorme fábrica de informações sobre quem somos e sobre as nossas relações humanas.

As controvérsias em nível global, porém, não esperaram. Embora possa ser muito útil para a economia e muito confortável em alguns aspectos, os abusos e o enorme poder concedido a muitas empresas tecnológicas deram origem a debates sobre a sua regulamentação. Deveríamos deixar escândalos como o Cambridge Analytica acontecerem sem quaisquer consequências? É lícito que a engenharia do nosso comportamento acabe matando uma menina de 14 anos?

Nesse sentido, diversas instâncias reguladoras são discutidas na ONU através, por exemplo, do Pacto Digital Global, iniciativa que busca lançar as bases para o que se espera do futuro digital das nações, emitindo princípios que os Estados devem seguir ao regular e desenhar de políticas públicas. Mas há uma agenda regulatória que vem avançando de forma crescente há alguns anos e que já teve avanços em acordos plurilaterais entre duas ou mais nações: a agenda de livre comércio na economia digital.

O acordo

O acordo de economia digital tem muitas partes e mudanças dependendo se está dentro da OMC ou num acordo bilateral entre países. Existem vários limites, definições e artigos, mas os artigos básicos e seus efeitos permanecem de negociação em negociação. O seu objetivo é liberalizar a cadeia produtiva, parte por parte, tentando fazer com que os grandes players da indústria digital percam concorrentes e se estabeleçam como donos dos monopólios que geram maior valor acrescentado na economia.

O documento estabelece a livre mobilidade dos dados: as empresas têm a possibilidade de levar toda a informação recolhida para onde quiserem, impedindo o acesso dos Estados e proibindo requisitos de localização ou processamento. Os dados são o que a economia chama de bens “não rivais”, aqueles que mais de uma pessoa pode consumir ao mesmo tempo sem que isso implique o seu esgotamento. Se bebo um copo de água ele acaba instantaneamente, mas o mesmo não acontece quando subo num trem, vejo um quadro num museu ou faço uma aula: são bens e serviços que posso consumir com outras pessoas e o quanto mais os consumimos, mais nos beneficiamos como sociedade.

A mesma base de dados pode, então, ser utilizada para ganhos empresariais, para conceber políticas públicas, para pesquisa acadêmica, para compreender processos demográficos ou para conceber novas ferramentas para comunidades específicas. Concentrar estes dados em poucas mãos e limitar o seu acesso equivaleria a construir um trem para uso de apenas uma pessoa, algo que claramente não faz sentido. Se acrescentarmos a isto que a maior parte dos dados são armazenados em paraísos fiscais para escapar das mãos dos reguladores e das comunidades que os geraram, é possível perceber a intenção monopolista desta captura de valor.

O acordo também estabelece que os dados podem sair da fronteira livres de taxas alfandegárias. Ou seja, o bem mais valioso atualmente nas economias pode ser extraído por pessoas ou empresas estrangeiras sem deixar rendimentos para a população que o gerou. Igual à extração de prata de Potosí: extrativismo de matéria-prima sem qualquer benefício para o território que a possui.

Outro dos seus artigos determina que um Estado não pode exigir que uma empresa tenha acesso aos algoritmos e ao seu código fonte associado (ou seja, às instruções executadas pelo algoritmo escrito na linguagem de programação específica) para auditar ou transferir tecnologia. Uma proposta não menos controversa. O perigo de um sistema automatizado desenvolvido com preconceitos discriminatórios decidir sobre nossas vidas já está documentado em livros, artigos acadêmicos e campanhas de divulgação. A Liga da Justiça Algorítmica foi criada para lutar contra isso.

Como se não bastasse, o acordo de livre comércio na economia digital tem outras pérolas. Propõe-se isentar as plataformas da responsabilidade pelos conteúdos que publicam. Num mundo onde se debate o impacto das notícias falsas na democracia ou da venda de conteúdos de pedofilia nas redes sociais, isto torna-se cada vez mais problemático. Todas estas questões devem ser debatidas por especialistas para alcançar urgentemente uma regulamentação que evite os efeitos nocivos deste conteúdo e a sua circulação nas redes. A assinatura do acordo vai na direção oposta.

Salve-se quem puder

Hoje existe um discurso hegemônico […] que diz que aqueles que estudam programação e trabalham para o Vale do Silício exportando serviços de informática não só serão salvos, mas levarão a região a ser o gigante que sempre sonhou. Não estaremos exportando a commodity da hora humana do programador para que ele possa entrar no mercado numa tecnologia estrangeira como, por exemplo, um telefone celular? […] O acordo de economia digital limita o acesso aos dados e restringe a oportunidade de debater como regular a “fábrica algorítmica” das indústrias digitais com o objetivo de avançar para uma sociedade mais humana e com diversas tecnologias no mercado internacional.

Em outubro de 2023, o governo de Joe Biden retirou parte do projeto que havia apresentado para negociação anos atrás: os artigos que decidiram reconsiderar são a proibição da auditoria algorítmica e a livre mobilidade de dados. Até o império tecnológico que são os Estados Unidos percebeu o grande problema que estes pontos implicavam. Embora o acordo cambaleie na OMC, estas regulamentações avançam noutros acordos de comércio livre.

É por esta razão que organizações da sociedade civil que defendem os direitos digitais na região, ONGs especializadas em questões de livre comércio, entre outras, assinaram uma carta pedindo aos Estados que se retirassem da negociação e reconsiderassem, primeiro, quais são as regulamentações nacionais necessárias para criar espaços regulatórios que conduzam à inovação e ao desenvolvimento tecnológico regional. A reunião ministerial da OMC que acontecerá em Abu Dhabi de 26 a 29 de fevereiro deste ano busca avançar na negociação e colocar o projeto de volta na mesa, garantindo que os 88 países que dele fazem parte cheguem a um acordo.

Existe um caminho possível, e parece ser o de criar tecnologias com elevado valor acrescentado, qualidade e padrões globais, novas e inteligentes. Este acordo empurra na direção oposta a esses objetivos. Esta não é a primeira vez que alguns burocratas na Suíça – que entendem muito sobre comércio liberal, mas pouco sobre economias mais humanas – negociam acordos de comércio livre para decidir o destino da região. Temos muito a oferecer no mercado global. Não vamos permitir novos saques. Não sejamos Potosí novamente.

 

domingo, 28 de janeiro de 2024

CRÔNICA DE UMA ANGÚSTIA PLANETÁRIA.

 Do face do João Lopes...

"O caos social, climático e econômico que vivemos não se traduz em estatísticas: são dramas terríveis que podiam ser evitados. Sabemos o que precisa ser feito e há recursos suficientes… mas seguimos como expectadores, submetidos a estúpidos bilionários"

Por Ladislau Dowbor -  22/01/2024 - Outras Palavras 

Uma visão geral dos nossos problemas, como humanidade, não é um exercício surrealista. Tanto progresso tecnológico, mas tanta violência e destruição, tanto sofrimento. E tantas narrativas sobre quem são os bons e quem são os maus. De que lado você está? A única certeza é que sou corintiano. O resto virou um caos.

(Ladislau Dowbor)

Eu sou economista. Minha principal área de interesse é linguística, falo vários idiomas, leio a Bíblia em hebraico, Dostoiévski em russo, Dante em italiano, Jorge Amado em português brasileiro e assim por diante. Sim, e Keynes em inglês, claro. Entrei na economia porque senti a necessidade de entender nossa bagunça. Isso foi em 1963, no dramaticamente desigual Nordeste do Brasil. Com tanto sofrimento e miséria diante dos opulentos magnatas da cana-de-açúcar, não pude deixar de sentir o absurdo. Quão profunda é a nossa capacidade de fingir que não vemos? Não foi porque estudei economia que fiquei indignado: a indignação me levou a esses estudos. Encontrei as respostas? O que descobri foi uma mistura de justificativas, em nome dos mercados livres – pode-se justificar qualquer coisa com um tanto de matemática e modelos – e construções idealistas. Eu ainda estou procurando. Não estamos todos?

Fiz o dever de casa, estudei com bons banqueiros na Suíça, com especialistas em planejamento na Polônia, ajudei países em diversos continentes, até trabalhei como consultor do Secretário Geral da ONU. Assisti à descolonização, à ascensão dos direitos das mulheres, à erosão do apartheid na África do Sul, a tantas esperanças. E atualmente me aferro às dramáticas estatísticas, a desigualdade, a fome, o desastre climático, a perda de biodiversidade e toda esta violência. Mas essas coisas não são estatísticas para mim, tenho 82 anos e ainda não suporto ver uma mãe com filhos dormindo na calçada de São Paulo, a cidade mais rica da América Latina, enquanto as pessoas atarefadas e os carros circulam de um lado para o outro. Que tipo de animal nós somos? Homo sapiens?

Assisto às horríveis notícias sobre a calamidade que ocorre na Palestina/Israel. Será essa uma questão de lados? Bem, cada um dos lados tenta fazer veicular na mídia as coisas mais horríveis que o “outro lado” fez, e temos a possibilidade de escolher bebês, crianças, mulheres, numa demonstração de barbárie de ambos os lados, um campeonato de notícias. Dependendo de quem é o dono da notícia, teremos mais barbárie de um lado ou de outro. E depois temos os comerciais, com rapazes sorridentes, moças lindas e as oportunidades que não devemos perder. Não olhe para cima. O que é isso tudo? Cada um de nós viveu a sua própria história e ela pesa.

Nasci em 1941, na fronteira espanhola, de nascimento seria catalão. Durante a guerra, na Europa, ninguém podia escolher o local de nascimento, cada um nascia onde quer que os seus pais tenham sido empurrados. Os meus pais, poloneses, um engenheiro e uma médica, escaparam à invasão alemã em 1939 através da fronteira sul e chegaram a França. Não eram judeus, mas se tivessem permanecido na Polônia o meu pai teria terminado, como engenheiro mecânico, em trabalhos forçados em fábricas alemãs.

Depois os alemães invadiram França, por isso os meus pais fugiram para sul, para a fronteira espanhola, mas esta foi fechada por causa de outra guerra, a tragédia espanhola a que o mundo assistiu com curiosidade, discutindo que lados tomar, no final dos anos 1930. Assim, nasci na fronteira espanhola, na França, de pais poloneses.

Como família, estávamos presos nos Pireneus, meus pais e quatro filhos. Eu me lembro, provavelmente tinha quatro anos, quando íamos para o campo com minha mãe colhendo pissenlit, um tipo de erva que se podia usar para comer ou fazer chá. Muitas gangues buscaram a sobrevivência na confusão geral, meu pai foi pego por milícias armadas, torturado, mas sobreviveu. É impressionante como produzimos milhares de filmes glorificando guerras, soldados heroicos, belos tanques, bombas. Vende bem. Temos que fazer uma pesquisa profunda para encontrar um filme sobre o que significa para as famílias viverem numa guerra. A miséria, o frio, a fome, a insegurança e a angústia permanentes. Angústia, em francês, é uma palavra mais forte. Não me fale sobre guerras. Mudamo-nos para o Brasil porque os meus pais, tendo vivido as duas Guerras Mundiais, perderam a confiança na Europa e na sua barbárie cultural. Sou, portanto, atualmente um economista brasileiro.

Somos bons em pensamento mágico. Os dramas simplesmente desaparecerão? Na história, sempre deixamos as coisas apodrecerem a tal ponto que a insegurança, as frustrações e a ganância evoluíram para formas ideais de libertação de pressão, através do ódio, da violência e da guerra. Acabei de ler um livro lindo, As Cruzadas Vistas pelos Árabes [The Crusades Seen by the Arabs], de Amin Maalouf. Não anticristão, apenas pesquisa sólida nos documentos do Oriente Médio daquela época, por volta do século XIII. As batalhas, as destruições, os 

massacres, os estupros, as humilhações. Por cristãos tementes a Deus, por xiitas, por sunitas ou entre si. Os dois séculos de guerras bárbaras foram seguidos pelas invasões mongóis. Mais massacres. Queimar livros não foi uma invenção nazista, na época já era um esporte para todos os lados.

Chegamos em 2024. Acabamos de sair da guerra do Afeganistão, com resultados trágicos para todos. E a guerra do Iraque, com a confusão que vemos atualmente. E o drama da Líbia. No momento em que escrevo, temos a Ucrânia, claro – Zelensky queixa-se de que o conflito na Palestina nos distrai –, mas a trágica guerra do Iêmen está fora dos noticiários, não são europeus brancos que estão a morrer. E temos os massacres no Sudão, claro, a África é muito

instável. Que curiosos os golpes de Estado no Mali, no Níger e em Burkina Faso! Por que eles simplesmente não respeitam a democracia? Bom, eu trabalhei nessas regiões sete anos. Já vi milhares de pessoas morrerem de cólera. Não temos as tecnologias para garantir água potável? Bem, Bezos precisa fazer uma viagem ao espaço. Seria ele um estúpido? Zuckerberg é idiota? Larry Fink? Prefiro considerá-los high tech assholes Sim, sei bem que esta não é uma categoria econômica. Mas eles não veem o que acontece com o mundo?

Os humanos adoram narrativas. Pode-se justificar praticamente qualquer coisa, e a humanidade é impressionantemente propensa a acreditar em praticamente qualquer coisa. Se há uma narrativa da qual temos que nos livrar é a de que você pode egoisticamente buscar a sua própria prosperidade, sem dar a mínima para o que acontece com os outros, e o resultado será uma contribuição para o bem comum. É como se a ganância individual resultasse em prosperidade geral. Bem, isso não acontece. A dura realidade é que estamos destruindo o nosso mundo pelo

poder e para a riqueza de uns poucos felizes. Você tem que ser um estúpido em Wall Street ou na ‘City’ para acreditar que “a ganância é boa”. Não é apenas um desastre para o ambiente que nos sustenta, é um desastre para a humanidade e, portanto, para a democracia. Bilhões de pessoas frustradas em todo o mundo acreditarão em quem quer que se aproveite da sua frustração e do seu ódio. O mundo não carece de demagogos.

Como podemos acreditar na narrativa da “externalidade”? É coisa que se ouve e lê em cada esquina. Sim, produzimos armas, mas é só para a segurança das pessoas – e não somos nós que puxamos o gatilho. Só produzimos as armas e respondemos a exigências legítimas. O mundo está se afogando em dívidas abusivas? Bem, aqueles que contraem dívidas deveriam ser mais responsáveis. Shaxson vai direto ao ponto: “Precisamos de financiamento, mas a medida da contribuição desse financiamento para a nossa economia não é se ele vai gerar bilionários e grandes lucros, mas se será capaz de nos fornecer serviços úteis a um custo razoável” (p.12).1 Mas estamos perante gigantes financeiros, e eles financiam tudo o que lhes trará mais

dinheiro, sejam lá quais forem os dramas sociais ou ambientais que essas atividades produzam. Eles são seguros, grandes demais para falir. Assegurados pelos nossos impostos, quando necessário. Em poucos anos as externalidades serão internas para todos e já estamos sentindo isso.

Marjorie Kelly, como tantos economistas hoje em dia, separa o setor financeiro (PIB do setor financeiro) e o crescimento do resto da economia (PIB do setor real), “que é a economia real de empregos e gastos em bens e serviços. Quando separamos estes dois, vemos que cerca de um terço do PIB está sendo extraído pelas finanças. E essa extração é muito maior do que já foi no passado” (p.147).2 Calculei os números correspondentes para o Brasil e cheguei aproximadamente ao mesmo número: mais de 30% do PIB drenado pelo rentismo financeiro improdutivo.3 Este mundo era para ser um em que os capitalistas lutam para ganhar o seu dinheiro, servindo-nos cada vez melhor. Em contraste, a Oxfam apresenta o quadro real: “Nos termos atuais, os países de rendimento baixo e médio-baixo serão forçados a pagar quase meio bilhão de dólares todos os dias em juros e reembolsos de dívidas entre hoje e 2029. 

Países inteiros estão à beira da falência, com os mais pobres os países gastam hoje quatro vezes mais no pagamento de dívidas a credores ricos do que em cuidados de saúde”.4 Isto representa mais da metade dos países mais pobres do mundo, 2,4 mil milhões de pessoas.

Se demorarmos muito para engolir as narrativas, quem pode nos ajudar são os think tanks, atualmente uma enorme rede de formação de opinião. Shaxson nos traz “a organização ideológica mais influente”, a Atlas Economic Research Foundation, bem como “a Templeton Foundation, financiada por Wall Street, as redes do magnata dos fundos de hedge Robert Mercer (um apoiador de Steve Bannon e Breibart News), e o que alguns chamam de “Kochtopus” – o nexo tentacular de ligações políticas e financeiras financiadas pelos irmãos bilionários Charles e David Koch. Os membros da Atlas incluem o American Enterprise Institute, o igualmente influente American Legislative Exchange Council (ALEC), o Cato Institute, a Freedom Foundation, a Heritage Foundation e, no momento em que este artigo foi escrito, mais de 180 outras instituições. E essas são apenas as redes de financiamento nos Estados Unidos: a Atlas encheu o mundo com 475 instituições parceiras – e a aumentar” (p.127). Seriam todos cegos?

O sistema tornou-se disfuncional. Os interesses dominantes são atualmente globais, sejam eles financeiros, de comunicação, de informação, de comércio de mercadorias ou de comércio de informação privada. Mas não temos capacidade de regulação global, exceto pelas enfraquecidas instituições internacionais herdadas do pós-Segunda Guerra Mundial, há 80 anos. Ainda temos autoridades que verificam as nossas bagagens nos aeroportos internacionais, enquanto os fluxos econômicos reais são apenas entradas virtuais em computadores. E tantas finanças desonestas e paraísos fiscais, tantas vendas ilegais de armas, tantos oligarcas navegando na confusão institucional e jurídica global.

Sim, sabemos o que deve ser feito, temos isso nos ODSs, no ESG, no Global Green New Deal, no Pacto Global, entre outros. Mas estamos desamparados, apenas observando o mundo descendo pelas corredeiras e se aproximando das cachoeiras. Apenas para lembrar que as tecnologias que dominamos e os recursos financeiros que desperdiçamos são mais do que suficientes para garantir que temos o suficiente para todos, sem destruir o nosso futuro. A ganância é para estúpidos. E constatar como estamos à deriva em meio a essa catástrofe em câmera lenta é repugnante.

LADISLAU DOWBOR

Economista e professor titular de pós-graduação da PUC-SP. Foi consultor de diversas agências das Nações Unidas, governos e municípios, além de várias organizações do sistema“S”. Autor e co-autor de cerca de 45 livros, toda sua produção intelectual está disponível online no website.

Impressões sobre o Seminário Reindustrialização em novas bases e apoio à inovação nas empresa

Mesas:

Revolução da Inteligência Artificial e seus impactos na sociedade

Bioeconomia como estratégia de desenvolvimento

Realizadas em 23.01.24 

 

Objetivo

Transmitir minhas impressões sobre o Seminário Reindustrialização em novas bases e apoio à inovação nas empresas, em especial, sobre as mesas que aconteceram no dia 23.01: Revolução da Inteligência Artificial e seus impactos na sociedade e Bioeconomia como estratégia de desenvolvimento.

 Justificativa

Buscar a socialização das percepções adquiridas durante as palestras proferidas, bem como abrir discussão com os companheiros/as da DITEC sobre os meus entendimentos, no sentido de equalizar o pensamento/conhecimento entre e com todos/as integrantes da Diretoria.

 As Palestras

- Revolução da Inteligência Artificial e seus impactos na sociedade

Coordenação: Fernando Peregrino, chefe de Gabinete da Finep

Palestrantes: Edmundo Souza – UFRJ/COPPE; Virgílio Almeida – UFMG; Anderson Souza – UFG; Fábio Borges – LNCC; Eliza Reis – ABC.

- Bioeconomia como estratégia de desenvolvimento

Coordenação: Fernando Peregrino, chefe de Gabinete da Finep

Palestrantes: Rodrigo Rollembrerg – MDIC; Ana Euler – EMBRAPA; Henrique Pereira – INPA; Paulo Renato Cabral – SEBRAE.

 Metodologia

Tentar juntar em um texto os vários tópicos colocados nas falas de cada palestrantes, a partir das anotações que fiz em cada palestra. Agrupando as anotações em cinco blocos: conceitualização/definição; desvantagens; vantagens/o que fazer; minha intervenção; conclusão.

Identifiquei 3 linhas de agrupamento com os totais a seguir:  3 pontos de conceituação/definição, 18 negativos, e 20 positivos. Segue abaixo um resumo das anotações.

Revolução da Inteligência Artificial e seus impactos na sociedade

Resumo

Dois palestrantes fizeram falas que poderiam ser entendidas como um esboço de definição do que seria uma Inteligência Artificial. A IA seria uma nova revolução industrial, uma nova onda ou um novo iluminismo. O que ponho em discussão ao final.

No ponto desvantagens, houve um grande número de coincidências como a perda do emprego; o pouco ou a falta de investimentos na Educação e na Ciência; as “Fakes News”; preocupação com o impacto nas eleições; o avanço das IAs sobre o trabalho intelectual; os riscos em relação ao aumento das desigualdades; a percepção pública negativa, em contrapartida aos donos do meios de produção e do setor financeiro; os erros e inconsistências que ainda aparecem nas produções de IAs; o atraso do Brasil no campo de desenvolvimento e regulação das IAs; a falta de competividade; os baixos valores das bolsas de pesquisa e desenvolvimento; a perda de cérebros para o exterior, entre outros.

Como pontos positivos ou o que fazer, temos várias coincidências também. Abro com a fala de que ainda somos nós que fazemos. A necessidade de um grande pacto social que deve ser somada às falas de criação de uma política de regulação com participação das universidades e sociedade; políticas públicas que não visem a substituição dos humanos; trabalhar com o trinômio IA – Humano – Robótica; IA no meio ambiente, agricultura, educação e indústria; estreitar a IA com a academia; retenção de cérebros. Temos ainda a necessidade de gerar força de trabalho com criticidade; aumento dos investimentos, também em recursos humanos; entender as IAs como novas janelas de oportunidades; investir em um pensamento mais generalista; as IAs são uma realidade, e são de grande capilaridade; combater o analfabetismo digital; IA para além dos profissionais de TI; pensamento para além da caixinha; divulgar os trabalhos de cientistas, em especial, qual o papel do cientistas e o que fazem.

 A intervenção

Foquei minha intervenção em quatro pontos, apesar da vontade de ir um pouco além.

O primeiro foi a quase que unânime fala dos palestrantes de que o Brasil deveria melhorar sua competitividade/inovação, como também foi a preocupação com o aumento da desigualdade. Por conta dessa dualidade – vivemos em um sistema que incentiva a competitividade e a desigualdade. Propus que o Brasil inovasse buscando o desenvolvimento de sua IA com cooperação e não para a competitividade, pois a possibilidade de aumento da desigualdade será certa se o desenvolvimento for focado na competição. Deviríamos trabalhar mais a cooperação e mudar o modelo de produção do sistema.

O segundo ponto foi na mesma linha acima, mas no campo da Educação. Iniciei falando que senti falta da Cultura em todas as falas, pois todos os processos de mudanças também são culturais, em especial os de dominação e de independência, se não forem pelas armas. Se vamos investir na Educação, que seja além da digital. Que se invista em um outro modelo de produção do conhecimento, pois o que está posto é para atender o modelo de produção do sistema, que depende da desigualdade e da competitividade.

O terceiro ponto, foi quanto à necessidade da regulamentação. Lembrei que somos capazes de produzir excelentes estatutos e Leis, mas somos péssimos em fazer cumprir os mesmos. Dei o exemplo do Marco Civil da Internet, que mesmo depois de quase destruído na Câmara Federal, é considerado um dos melhores do mundo porque foi amplamente discutido com a sociedade. Hoje, temos uma comissão no Senado que não sabemos quem são e qual o conhecimento para tal responsabilidade, e sequer se tem terraplanista em sua composição. Não resolvemos a questão das redes sociais e queremos regulamentar a IA.

Termino dizendo que a mesma tecnologia que mata, é a que salva. A tecnologia que permite o “fake News” é a mesma que transmite a boa informação. E que hoje, ainda somos nós, humanos, que decidimos o como usar as tecnologias.

Conclusão

Acredito que o impacto da IA, está mais para a prensa de Gutemberg do que para a revolução industrial, bem como longe do Iluminismo, que buscava a razão, pois ainda não temos IA com razão ou mesmo ética. Uma nova onda, pode ser, só não sabemos se tsunami.

Ficou patente entre os palestrantes “técnicos” – a exceção, Elisa, é socióloga - a existência de um certo afastamento entre a academia e o dia a dia da população. Especialmente quando ainda se referem a tríplice hélice, como se ela funcionasse harmonicamente, quando na realidade o governo e a universidade atendem a necessidade da indústria. Na realidade, atendem ao modelo de produção capitalista, onde o sistema (na hélice – indústria) demanda as Leis para que o governo promova e influencia nos currículos educacionais, para que suas necessidades sejam atendidas. A discussão hoje seria a hélice quíntupla, onde a sociedade, em iguais condições com o governo, indústria e universidades discutiriam sempre levando em consideração os impactos ambientais, onde as pás seriam:  sociedade – ambiente – universidade – governo – indústria.

A questão da ética foi tocada na fala da Elisa e do Edmundo, se não me engano, mas não foi a tônica, quando na minha opinião, seria uma das questões primordiais. Não dá mais para engolir, por exemplo, a Monsanto lançar um produto que aumenta a produção leiteira em uns 20l por vaca, e vacas e humanos adoecerem, nascerem defeituosos, e a empresa dizer que: cientificamente o processo está certo, o problema foi na tecnologia aplicada... RIDÍCULO e desrespeitoso, uma vez que os cientistas e os desenvolvedores das tecnologias são humanos que erram e acertam.

Outro ponto foi quanto ao desenvolvimento das IAs: senti uma concordância implícita, de que não passariam de máquinas treinadas, quando as discussões sobre atingirem ou não consciência e ética fervilham. No momento são treinadas e a minha preocupação está em qual modelo de sociedade estão sendo treinadas... se nesse modelo em que vivemos, com certeza irão existir Elysiuns, e depois SkayNets...

Precisamos abandonar os quadrados impostos pelo sistema, com ênfase em sua fase neoliberal. O palestrante Anderson Souza, que defendeu explicitamente a tríplice hélice, foi o único “técnico” que defendeu a questão do ser generalista, encaminhada também pela Elisa, quando falou em sair do quadrado. O olhar deve ser mais humano, como era a Economia até o final do século XVIII - Economia Político Científica, hoje só Economia onde só leva em conta se o número é azul ou vermelho. Somente com uma visão contextualizada poderemos realmente avançar científica e tecnologicamente na direção do bem-estar da população, e não apenas de uma minoria.

Obs:

·   O palestrante Virgílio comentou que o governo dos EUA, em 2023, investiu 250 bi de dólares em pesquisas sobre a IA. Lembro que neste mesmo período, o mesmo EUA, investiu 850 bi de dólares em armamento. Qual a prioridade do sistema?

    Como ficará a questão da proteção dos dados individuais e dos bancos de dados nacionais com resultados das pesquisas desenvolvidas nas diversas áreas? Serão de livre acesso? A questões de segurança nacional, como ficará? Uma vez que as IAs se desenvolvem capturando estas e outras informações?

·        A Universidade de Goiás criou a graduação em IA tendo o SISU como a porta de acesso.

 Bioeconomia como estratégia de desenvolvimento

 Resumo

Apesar de não ser a “minha praia”, mas por acreditar na linha generalista, a nossa preocupação deve principalmente estar nas consequências, nas externalidades boas ou ruins de nossas atitudes - tanto as profissionais quanto as de relacionamento.

Lembrando Keynes, que define o economista mestre como aquele que, entre outros saberes, deve ter algum conhecimento em matemática, filosofia, história e ser um estadista. Devemos ter alguma atenção sobre as demais áreas do conhecimento, em especial, sobre aquela que impacta em todas as vidas... a ambiental. Portanto, com outro olhar, seguem minhas impressões sobre o colocado pelos palestrantes.

 Após a abertura do Rodrigo Rollemberg, do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, apresentando a linha de ação e números financeiros, assistimos às falas dos representantes da EMBRAPA, INPA e SEBRAE.

 Nada de novo no front da EMBRAPA, para além da capacidade da empresa e de seus resultados. Com foco na região amazônica mostrou seus avanços, projetos e sua atuação no resgate e manutenção da biodiversidade da floresta e de seus povos. Por parte do INPA a mesma linha. A surpresa, para minha pessoa, veio na apresentação do SEBRAE, em especial no projeto INOVA (Inova Amazônia, Cerradoa, Pampa, ...), onde trabalha o empreendedorismo junto à população local com ênfase nos produtos gerados a partir da floresta, sem renunciar à manutenção da biodiversidade e a cultura local. Onde surpreendeu a representante da EMBRAPA, quando foi apresentado o número de 60% dos projetos inscritos tinham mulheres em seus comandos, contra o número nacional de 20%, como lembrou a Euler (EMBRAPA).

Foi apresentado como exemplo uma cooperativa de mulheres que vende suas saboarias e shampoos e outros produtos na avenida Paulista e no mundo. Mas a grande sensação que causou certo alvoroço, foi um chá proveniente de uma árvore africana, usado em ritual de passagens da vida criança para adolescência e adulta, que após pesquisa por um brasileiro, descobriu em uma árvore brasileira os mesmos componentes do chá. O alvoroço foi quando o palestrante informou que o chá “resetava” a mente... todos queriam experimentar...

Brincadeiras à parte, o produto não é vendido em farmácias, é usado por psicólogos e afins e pelo exército americano, para tratamento de seus veteranos traumatizados.

Encerrando, a novidade para mim foi esse trabalho do SEBRAE, devido à minha implicância com a utilização do termo empreendedorismo dado pela mídia em subserviência do sistema capitalista.

Há braços.

Sérgio Mesquita

 

 

terça-feira, 2 de janeiro de 2024

Cai bem um ansiolítico na redação do Estadão

"Esforço do jornal está explícito até para os menos afeitos à política: é reabilitar o inelegível para repetir na cédula de 2026", escreve Denise Assis - 1 de janeiro de 2024, 13:15h – Brasil 247

O editorial do “Estadão” – que leio por dever de ofício – nos diz que “É hora de encerrar os inquéritos contra golpistas”. Do meu canto lhes digo que ou o jornal está surdo ou prefere seguir falando para a bolha de 25% de bolsonaristas que insistem em voltar as costas para o próprio país e seus avanços internos e externos. 

No dia da posse de Luiz Inácio Lula da Silva, em primeiro de janeiro de 2023, uma data como a de hoje, o grito que surgiu na massa compacta que foi a Brasília garantir sua posse foi: “sem anistia!”. O que deixa transparecer o Estadão é a busca insana de uma “anistia” informal, calcada no argumento fajuto e de encomenda do meio militar do: “vamos virar a página”.

Já fizemos isto no passado e deu no que deu. Um país com deficiência em cultura política e acomodado quando a questão resvala para a tutela militar. Os argentinos - emocionais que são, a ponto de na revolta eleger um Milei -, agiram em sentido contrário, colocando no banco dos réus os generais que assassinaram e desapareceram com os seus presos políticos custodiados pelo Estado. Hoje têm consciência da crise que os ameaça, indo às ruas nos primeiros dias do governo eleito, para dizer não à ameaça autoritária. Sentem cheiro de ditadura à distância, porque a viraram do avesso, foram atrás dos algozes, sabem a cor que ela tem e não a querem repetir.

O esforço do jornal está explícito até para os menos afeitos à política: é reabilitar o inelegível para repetir na cédula de 2026 o enfrentamento de 2022 entre ele e Lula. Na falta de um nome que arregimente votos contra o petista – que é o que parece exclusivamente interessar ao corpo editorial –, retoma-se o candidato enxovalhado. A tal ponto que querem forçar a barra para uma mudança nas leis, passando pano para crimes que de fato são crimes, como a falsidade ideológica praticada com a falsificação dos cartões de vacina. E o que dizer do roubo das joias, que é disso que se trata. Outro crime flagrante.

Não há no horizonte o surgimento de nenhum candidato de peso na oposição, a ponto de fazer frente, por enquanto, a Lula ou a algum possível substituto, dado o trabalho de reconstrução feito pelo atual governo. Já se vê pelas pesquisas um terço do eleitorado titubeante – não o raiz – do inelegível, pular para o lado do atual presidente, apoiando as suas ações. Não dá para ignorar o menor índice de desemprego desde 2015 e tampouco um crescimento de 3%, quando as previsões dos “economistas de sempre” giravam em torno de 0,8%.

Elaborar um diagnóstico preciso a respeito desse quadro de luzes e sombras envolvendo a atuação do STF é tarefa ainda a ser realizada. Até mesmo porque os inquéritos são, todavia, sigilosos. Não se conhece toda a extensão dos ataques, tampouco o alcance das medidas tomadas pela Corte. De toda forma, há dois pontos indiscutíveis: as circunstâncias do País são outras – aquelas ameaças ao regime democrático já não existem mais – e os inquéritos criminais têm de ter prazo para acabar – não podem permanecer indefinidamente no tempo”.O que o Estadão quer é a “prescrição” do crime contra o estado democrático de direito, em cinco anos, quando a pena prevista, somados todos os elementos que a compõe beira os 20 anos. Para isto, sugerem: “Além da questão jurídica – inquéritos devem respeitar os trâmites e limites legais –, o encerramento dessas investigações tem também uma evidente dimensão social e política, que o STF não pode ignorar. Não faz bem ao País – nem ao Supremo – um permanente e extravagante protagonismo da Corte constitucional. Se houve, nos últimos anos, circunstâncias excepcionais – que felizmente o STF soube detectar a tempo –, é preciso reconhecer quando elas já não se fazem presentes”. Como assim???

O que o Estadão busca é praticar a política do inominável na pandemia: “Vão ficar chorando até quando? Chega de mimimi” ... E estávamos falando de 700 mil vidas. É como pedir a uma mãe que toque a vida e esqueça a morte do filho estudante, a caminho da escola, morto pela Polícia. Multiplique-se isto por um país inteiro quando a morte de que tratamos é a da democracia.

Medida processualmente correta, encerrar os inquéritos é um gesto que fortalece a autoridade do STF e distensiona o País. As águas devem voltar ao seu leito normal”.

Não devemos estar vivendo em um mesmo país, (eu e o Estadão) onde as redes sociais refletem ainda a animosidade residual das eleições passadas, que só vai cessar quando houver punição exemplar para os culpados do crime contra o Estado (e aí eu incluo os militares envolvidos e já indiciados).

Um país em que o golpe brando e continuado nos leva a ter o executivo sufocado de um lado, pelo avanço despudorado e imoral do presidente da Câmara e seus pares, sobre o orçamento. Do outro, pelo presidente do Banco Central que trava o crescimento. Tudo isto, resultado da tentativa de golpe orquestrada todos sabemos por quem. Não dá para as águas voltarem ao seu leito normal, quando a todo momento vimos alguém atirar pedras para fazer marolas. E, por fim, não cabe a um jornal se meter nas questões jurídicas em andamento. Tomem um ansiolítico e aguardem o veredicto.


Denise Assis

Jornalista e mestra em Comunicação pela UFJF. Trabalhou nos principais veículos, tais como: O Globo; Jornal do Brasil; Veja; Isto É e o Dia. Ex-assessora da presidência do BNDES, pesquisadora da Comissão Nacional da Verdade e CEV-Rio, autora de "Propaganda e cinema a serviço do golpe - 1962/1964, "Imaculada" e "Claudio Guerra: Matar e Queimar".


Batalha civilizatória

 Luiz Gonzaga Belluzzo

A liberdade só é possível com igualdade e respeito ao outro

Como sempre ocorre, a vida correu e Lula completou o primeiro ano de seu terceiro e difícil mandato. Um economista raiz, assim fala a molecada, embrenhar-se-ia no matagal de suas sapiências econômicas para esfregar as árvores de suas certezas e despejar conselhos e recomendações ao presidente. Vou escapar a tais protagonismos e agradecer a Lula por sua proeza menos celebrada, mas, em minhas modestas avaliações, a mais valiosa. A vida política nacional voltou a respirar os ares da tolerância e da busca da convergência, mesmo entre divergentes que divergem de forma radical.

Sugeri ao amigo e companheiro Gabriel Galípolo que, diante do catennaccio armado pela defesa dos adversários da civilização e da democracia, nos restam as habilidades do bom driblador. Não sabemos se as manobras do habilidoso vão culminar com a bola na rede. Tomara. No momento, resta-nos, torcedores, agradecer pelo retorno da civilidade no Brasil, mais uma vez espargida para além fronteiras.  

Uma pergunta torna-se, no entanto, inevitável: estamos nós e Luiz Inácio, o Lula, a sofrer no mundo uma crise que nega os princípios fundamentais que regem a vida civilizada e democrática? Se isso for verdade, quanto tempo mais a humanidade suportará tamanha regressão.

A angústia torna-se ainda maior quando constatamos que as possibilidades de conforto material para a grande maioria da população deste planeta são reais. É preciso agradecer ao capitalismo, e ao seu desatinado desenvolvimento, pela exuberância de riqueza gerada. Ele proporcionou ao homem o domínio da natureza e uma espantosa capacidade de produzir em larga escala os bens essenciais para as satisfações das necessidades humanas imediatas. Diante dessa riqueza, é difícil encontrar razões para explicar a escassez de comida, de transporte, de saúde, de moradia, de segurança contra a velhice etc. Numa expressão: escassez de bem-estar.

Um bem-estar que marcou os conhecidos “anos dourados” do capitalismo. A dolorosa experiência de duas grandes guerras e da depressão pós-1929 nos ensinou que deveríamos limitar e controlar as livres forças do mercado. Os grilhões colocados pela sociedade na economia explicam quase 30 anos de pleno emprego, aumento de salários e lucros e, principalmente, a consolidação e a expansão do chamado Estado de Bem-Estar Social. Os direitos garantidos não deveriam ser apenas individuais, mas coletivos. Vale dizer, sociais. Dessa maneira, ao mesmo tempo que o direito à saúde, à previdência, à habitação, à assistência, à educação e ao trabalho eram universalizados, milhares de empregos públicos de médicos, enfermeiras, professores e tantos outros eram criados.

O Welfare State não pode ser interpretado como mera reforma do capitalismo, mas como uma grande transformação econômica, social e política. Ele é, nesse sentido, revolucionário. Não foi um presente de governos ou empresas, mas a consequência de potentes lutas sociais que conseguiram negociar a repartição da riqueza. Isso fica sintetizado na emergência de um Estado que institucionalizou a ética da solidariedade. O indivíduo cedeu lugar ao cidadão portador de direitos. As gerações que cresceram sob o manto generoso da proteção social e do pleno emprego acabaram, porém, por naturalizar tais conquistas. As novas e prósperas classes médias esqueceram que seus pais e avós lutaram e morreram por isso. Um esquecimento que custa e custará muito caro às gerações atuais e futuras. Caminhamos para um Estado de Mal-Estar Social.

[No mundo, caminhamos para um Estado de Mal-Estar Social]

Essa regressão social se iniciou quando começamos a libertar a economia dos limites impostos pela sociedade, já no início dos anos 70. Sob o ideário liberal dos mercados, em nome da eficiência e da competição, a ética da solidariedade foi substituída ética da concorrência ou do desempenho. É o seu desempenho individual no mercado que define a sua posição na sociedade: vencedor ou perdedor. Ainda que a grande maioria seja perdedora e não concorra em condições de igualdade, não existem outras classificações possíveis. Não por acaso o principal slogan do movimento Occupy Wall Street é “somos os 99%”. Não por acaso, grande parte da população espanhola está indignada.

Como acreditar que precisamos escolher entre o caos e a austeridade fiscal dos Estados, se essa austeridade é o próprio caos? Como aceitar que grande parte da carga tributária seja diretamente direcionada para as mãos de quem ocupa o trono do 1%, os detentores de carteiras de títulos financeiros? Por que a posse de tais papéis que representam direitos à apropriação da renda e da riqueza gerada pela totalidade da sociedade ganham preeminência diante das necessidades da vida dos cidadãos? Por que os homens do século XXI submetem aos ditames do ganho financeiro estéril o direito ao conforto, à educação e à cultura?

As respostas para tais questões não serão encontradas nos meios de comunicação de massa. Os espaços de informação e de formação da consciência política e coletiva foram ocupados por aparatos comprometidos com a força dos mais fortes e controlado pela hegemonia das banalidades. É mais importante perguntar o que o sujeito comeu no café da manhã do que promover reflexões sobre os rumos da humanidade.     

A civilização precisa ser defendida. As promessas da modernidade ainda não foram entregues. A autonomia do indivíduo significa a liberdade de se autorrealizar. Algo impensável para o homem que precisa preocupar-se cotidianamente com sua sobrevivência física e material. Isso implica uma selvageria que deveria ficar restrita a uma alcateia de lobos ferozes. Ao longo dos últimos 200 anos de história do capitalismo, o homem controlou a natureza e criou um nível de riqueza capaz de garantir a sobrevivência e o bem-estar de toda a população do planeta. Isso não pode ficar restrito para uma ínfima parte. Mesmo porque, o bem-estar de um só é possível quando os demais à sua volta se encontram na mesma situação. Caso contrário, a reação é inevitável, violenta e incontrolável. A liberdade só é possível com igualdade e respeito ao outro. É preciso colocar novamente em movimento as engrenagens da civilização.

Publicado na edição n° 1291 de CartaCapital, em 27 de dezembro de 2023

https://www.cartacapital.com.br/economia/batalha-civilizatoria/

Lula, por mares nunca dantes navegados

 Se queriam um governo radicalmente de esquerda esqueceram de dar a Lula um Congresso radicalmente de esquerda, caros camaradas

 10 de dezembro de 2022, 11:22 h – João Lopes – Brasil 247

 Lula, como Ulisses, agora empreende a viagem da volta para Ítaca, ou, como Edmund Danté, viverá o ajuste final de contas com seus detratores e traidores, assumindo o governo dia primeiro de janeiro. Queiramos usar uma metáfora ou outra, não há como ser lenientes com golpistas e traidores, se o sentimento de vingança e o ressentimento não são bons conselheiros, é bom flechar os pretendentes de Penélope, senão eles continuarão a almejar usurpar o trono.

 Quem tem acompanhado os artigos que publiquei saberá que dissenti de parte da crítica da esquerda, tanto na visão de que eu via uma impossibilidade absoluta de virada de Bolsonaro no segundo turno, quanto na ideia de que é impossível um golpe antes da posse de Lula. Não há acúmulo de forças para o fascista, atualmente no poder, empreender o putsch final. Uma coisa é certa, nas tentativas de insurgências, sejam revolucionárias, sejam golpistas e contrarrevolucionárias, o momento da arremetida contra o a ordem deve ser tratado como uma ciência, não como algo aleatório. 

 Tudo que Bolsonaro fez, desde que assumiu o Planalto, foi conspirar para acabar com Estado Democrático de Direito e rasgar o que sobrou da Constituição de 1988. Para isto aparelhou o Estado, implantando uma mafiocracia, que foi desde emendas secretas escusas, a patrocínios mal explicados, com dinheiro público do BNDES para os cantores do agro, a desvio de verbas do MEC para construção de igrejas evangélicas. Um farto propinoduto, cuja extensão não sabemos o tamanho, irrigou uma estrutura golpista neonazista emergente.

Empresário não dão ponto sem nó, não dilapidam seu patrimônio por questões puramente ideológicas. Os empresários do agro e dos transportes, que gastaram rios de dinheiro nos vários intentos golpistas, foram irrigados por uma rede subterrânea de subvenção e patrocínio público, assim como as lideranças neopentecostais, encantadas com os rios de dinheiro que afluíam, desde verbas do MEC a ONGs, que iam de cuidado com crianças indígenas a tratamento de pessoas com transtornos mentais e dependentes químicos. O farto caudal de recursos públicos e de assalto ao Estado garantiu a “fidelidade” de Malafaia, Valadão e quejandos. 

 Esta aliança muito espúria entre agro, neopentecostalismo conservador protofascista (que mobilizou contingentes de lúmpen nas grandes cidades para servir de exército bolsonarista) e grandes setores reacionários da classe média, tomou forma como um movimento permanente de massa, que foi muito além da pauta conservadora. O crescimento das células neonazistas no Brasil, principalmente na região sul, é o termômetro desta escalada nazifascista.

 Neste angu tem muito caroço ainda, neste exército neonazista ainda há que se inserir a disseminação de armas nos clubes de tiros espalhados pelo Brasil (fala-se em mais de 2 milhões de armas nas mãos de particulares hoje, e que tem que ser desmontados e suas armas apreendidas) e o aparelhamento de associações de praças da PM (inclusive com o encorajamento de motins em estados em que a oposição a Bolsonaro governa, como Bahia e Ceará). 

 O ápice espúrio deste festim diabólico foi o setembro de 2021, no qual o Brasil ficou muito perto de um golpe de Estado, com a possibilidade de decretação de estado de sítio e dissolução de poderes. Os relatos têm pequenas nuanças, discordâncias sobre o porque do não desfecho, com a decretação de Bolsonaro como ditador. Nos vários relatos o papel principal não nos coube, ao movimento social organizado, mas ao STF, que ameaçou de prisão até o vice-governador de Brasília, caso não agisse para evitar o caos, mas alguns assinalam que foi a falta de perspectiva e projeto que evitou o golpe final de Bolsonaro. Se decretar ditador é uma coisa, manter o poder é outra bem diferente. Sem apoio internacional e sem projeto, na solidão da imensa sala, decorada de forma brega por Micheque, com quadros de Romero Brito, fica a dúvida se lhe faltou a iniciativa de dar o passo, que podia ser em falso e sem retorno, ou para a democracia ou para ele, ou se a ação do STF contra o golpe é que foi eficaz.

 De aí em diante, continuam os dissensos nas várias análises. Alguns continuaram a ver uma escalada golpista, eu e alguns poucos outros vimos um declínio do perigo de golpe. O roteiro de 2022, ainda que com algumas manifestações de massa no Rio, Distrito Federal e Brasília (como uma caricatura da tanqueata que ele gostaria de fazer em plena Presidente Vargas, no Rio de Janeiro, e da qual foi proibido pelo seu Estado maior) era de perda de musculatura para o golpe, incluindo aí a ação subsequente do STF que prendeu várias lideranças e andou bloqueando canais de sustentação empresarial financeira dos eventos. Bolsonaro passava a ser um leão de circo, que ruge, mas não tem dentes nem garras. Não é possível fazer um golpe só com praças descontentes e generais de pijama, há que haver, senão um consenso, pelo menos hegemonia entre os comandos das 3 forças.

 Na continuidade, uma PEC de assalto ao erário despejou dinheiro para que ele fosse reeleito. Talvez acreditando que conseguiria manter o poder dentro das quatro linhas, afinal, desde a redemocratização, nenhum presidente eleito perdeu a reeleição com a máquina na mão, o fascista blefou nas ameaças de golpe, ainda que mantivesse sua turba sempre agitada e decidiu que ganharia a eleição. A tentativa malograda de 2021, a flopada da tanqueata em 2022, a total falta de articulação e reconhecimento internacional num possível movimento golpista, a não hegemonia entre o comando das FFAA sobre o não reconhecimento das eleições, a conjunção de vários fatores foi minando o caminho de um possível novo capitólio.

 Quando um arremedo das forças originais golpistas saiu às ruas para tentar ocupar vias públicas, e o STF apressou-se em ratificar a vitória de Lula, eu escrevi com todas as letras que não devíamos temer um golpe antes da posse de Lula, nossos problemas começarão a partir do dia primeiro de janeiro. Não era preciso esperar Bolsonaro sair do silêncio e reconhecer a passagem de poder, ameaçando, desde já todavia conspirar desde o primeiro segundo para a derrubada de Lula. Uma olhada desleixada para a conjuntura nos daria este quadro, falta de acúmulo de forças golpistas para evitar a assunção de Lula, mas um governo que começará sitiado, assim como o de Pedro Castillo no Peru, ou de Alberto Fernández, na Argentina.

 Dizer que não há acúmulo de forças para um golpe não é negar o perigo dele. Há contradição nesta análise, óbvio que há, a realidade é contraditória. Seu somatório não é determinista, é impossível fazer um “xadrez do golpe”, porque simplesmente os fatores quantitativos e qualitativos se interpenetram e trocam de lugar. É a famosa passagem da quantidade a qualidade marxista-hegeliana, que torna impossível qualquer previsão com determinismo. Análise de conjuntura não é previsão de Mãe Diná ou Nostradamus.

 Lula navegará por mares nunca dantes navegados porque simplesmente nunca governou em condições tão adversas. Assim como Ulisses, Lula deverá se amarrar ao mastro do navio que conduz, para que o transatlântico Brasil não seja destroçado entre Cila (uma extrema esquerda com frases altissonantes e nenhum apego à realidade) e Caríbdis (o projeto neoliberal de tentar comer o governo do PT por dentro).

 A conjuntura é angustiante. Lula não terá maioria nem na Câmara e nem no Senado, sem ter que se apoiar nesta enorme franja de direita fisiológica a que se convencionou denominar, sem nenhum acerto, de Centrão. Não adianta Samia Bonfim e Glauber vociferarem de que temos que manter nossa castidade ideológica e descer dos montes com os 10 mandamentos do DCE da UFF dizendo que o PSOL não deve fazer parte de um governo de coalizão. A realidade é muito maior que a eleição do DCE da UFRJ ou da USP. Não estamos às portas do Palácio de Inverno em São Petersburgo e nossas tropas não possuem nem atiradeiras. Este governo de Lula é necessariamente um governo de coalizão que fará muitas concessões às forças antagônicas ao nosso projeto, porque é isto, ou é não governar e viver 24 horas sob a pressão de um golpe. E por favor, não me venham com dizeres patéticos de “que temos que governar com povo na rua”. Isto é só uma fala pseudorrevolucionária, cuja última lição aprendida foi a derrota avassaladora da esquerda chilena na reforma constitucional. Detalhe importantíssimo, a esquerda chilena estava melhor organizada que a nossa e teve total hegemonia da rua nos últimos 4 anos no Chile. Tomou uma coça na votação da Constituição e aprendeu que hegemonia nas ruas não é a mesma coisa que hegemonia no parlamento ou mesmo nas votações.

 Este palavreado não faz nenhum sentido porque não temos nenhum acúmulo de forças no movimento social que nos autorize a fazer bravatas. Li Lênin e Marx demais para não detectar o que ambos denominavam de fraseologia pseudorrevolucionária pequeno-burguesa. Em política não se blefa no discurso, não se alardeia uma força que não se tem porque o outro lado também sabe contar garrafinhas.

 Se algum dia pretendemos governar com o “povo nas ruas” temos que voltar não só a mobilizar, mas a organizar nossas tropas. Reunir-se uma vez por mês para protestar contra o governo Bolsonaro não nos autoriza a dizer que fizemos um bom trabalho de preparação e oposição. Os sindicatos estão quebrados, destruídos, sem fonte de recursos depois do fim do imposto sindical, sem nenhuma outra fonte de recursos que o valha. Não, não se faz luta sindical sem aparelho sindical. Não temos fora dos sindicatos nenhum grande movimento organizado citadino que mobilize milhões. Os 2 que temos, não o são. Um, o MST, é um movimento camponês num país predominantemente urbano, o outro, o MTST, ainda que respeitável, se restringe a uma camada de lumpesinato, ganha para a luta progressista que nunca disputará hegemonia sozinho.

 Com bravatas não se ganha uma guerra.

 Não, não vamos governar sem o Congresso e através das massas, não, não preparamos uma forma de poder popular como na Venezuela, em que há comunas espalhadas por várias províncias do País e uma assembleia constituinte que foi com voto proporcional a cada segmento social. A conjuntura é complicada, porque somos um movimento de coalizão que derrotou o fascismo e agora precisa desarmar todas as bombas montadas por ele.

 Lula terá que governar com o Congresso que tem, será até certo ponto prisioneiro de Artur Lira e Rodrigo Pacheco, e só conseguirá restringir o orçamento secreto se o próprio STF tomar a iniciativa de considerá-lo ilegal. Nunca conseguirá maioria nas 2 casas para soterrá-lo. Terá que governar o tempo inteiro sorrindo e afagando o Centrão, ou não governará. Isto não significa que não governará tocando sua pauta, como o faz agora no caso da PEC do Bolsa Família, no sentido estreito das forças que temos, significa que teremos que pautar o que estritamente, dentro do nosso programa, não açule o golpismo dentro do Congresso mais fascista e conservador da história.

 Teto de gastos, orçamento secreto, o orçamento dilapidado pelo aparelhamento de Estado feito por Bolsonaro para tentar a reeleição, a Petrobras servindo aos interesses apenas dos acionistas nacionais e internacionais e não ao povo brasileiro (o petróleo, senhores, lembrem-se, foi central no golpe). As bombas que ameaçam estourar já no dia 2 de janeiro já farão que o governo comece pisando em ovos. É necessário rever a política de preços do petróleo, para isto, é necessário um verdadeiro “paredão” (sem vítimas fatais) na Petrobras. É óbvio que quando Lula mexer na Petrobras, destituindo a atual diretoria e mudando a política de preços o tal Mercado (na verdade a elite do atraso brasileira) reagirá especulando da forma que sabe, evasão de divisas com subida especulativa do dólar, queda da bolsa, etc. Será impossível omelete sem quebrar ovos e, por hora, o discurso é que não podemos governar para o mercado.

 Todas estas manobras serão fundamentais para governar, lembrando que do outro lado se construiu um know how golpista. Eles ensaiaram e se organizaram para dar o golpe durante quatro anos. Não vão desistir de o fazer porque Lula agora governa, só se radicalizarão mais e mais. É necessário desarmar a direita fascista no Brasil. Para isto é preciso coragem. Não, o perdão não é solução neste caso, para a tal falada conciliação nacional. Maquiavel falava que o mal tem de ser feito de uma só vez. Lula não pode repetir o erro de nomear um Ministro da Justiça estilo Eduardo Cardoso, cujo esporte era fazer vista grossa a toda e qualquer manifestação golpista, incluindo as polícias federal e rodoviária federal.

 Alexandre de Moraes já deu o tom. Tem que se congelar os fundos golpistas e até sequestrar os bens dos sediciosos se for o caso. Não é necessário dar um tiro para isto, basta se aplicar a lei e prender, como feito agora na Alemanha, quem conspira contra o Estado. Superintendente de Polícia Rodoviária que conspira e prevarica tem que ser preso e demitido a bem do serviço público. Empresário que conspira tem que ter os bens sequestrados pelo Estado. Empresa de caminhões que faz locaute em estradas tem que ter os caminhões apreendidos e as contas bloqueadas. Não é possível paz e amor e leniência com quem quer nos matar e nos colocar num AI5. As células neonazistas têm que ser desarticuladas e suas lideranças todas postas na cadeia. Liderança protofascista travestida de pastor, que pede ditadura militar e golpe, tem que ter o mesmo destino.

 Aliás, um nó górdio neste caso é o tal “diálogo com os evangélicos”. Precisamente de que estamos falando? Camaradas, vamos dar nome aos bois, não se trata de perseguição ou falta de liberdade de culto, aqui no Brasil qualquer idiota com o sexto ano fundamental pode abrir uma igreja em qualquer esquina, é mais fácil que abrir um boteco. Não, não há restrição, perseguição ou “preconceito das esquerdas”. Há sim um colóquio flácido para bovídeo dormitar que criou um mito de “cristofobia”, numa país 85% declaradamente cristão (entre católicos e evangélicos). No Brasil religião perseguida é o candomblé e a umbanda, num flagrante caso de racismo religioso aberto e acobertado pelo discurso de “liberdade de crença”. Não existe cristofobia, é uma mentira dita mil vezes que acaba se tornando uma verdade. O diálogo deve sim acontecer, de forma laica e não como segmento, já que o que estamos falando, demos nome aos bois, o tal diálogo é de se assumir uma pauta conservadora como sendo “pauta da família”, ou tomar parte numa verdadeira guerra religiosa pela hegemonia da crença no Brasil, guerra na qual a esquerda não pode e nem deve ter lado. O único lado que a esquerda pode ter é a do Estado laico. Boa parte dos pastores eleitos e que fizeram um bloco ultraconservador no Congresso (com raras e honrosas exceções, como Benedita da Silva no Rio) querem ou impor sua pauta ou continuar a receber benefícios impróprios do Estado. De uma forma ou de outra não é um “diálogo possível”. E sim, temos que dizer aberta e claramente que boa parte das denominações pretensamente evangélicas hoje se tornaram células protofascistas com um projeto de poder próprio que passa longe do evangelho. É uma equação difícil o relacionamento com um setor que sim, tem um projeto de hegemonia e de ataque ao Estado laico.

 Por fim, fazer um bloco no Congresso, com o Centrão de um lado e o PSOL do outro é uma equação que só Lula poderá (ou não) resolver. Vimos já as manifestações edipianas de Sâmia Bonfim e Glauber Braga contra o PSOL participar do governo petista. Para certos setores do PSOL, muito ligados a uma esquerda acadêmica pequeno-burguesa, que precisa reafirmar o tamanho do seu ego marxista todo dia, é fundamental dizer que são diferentes do PT. A verborragia é revolucionária, a prática é academicista. Não conseguem organizar nenhum setor dos trabalhadores ou das camadas proletárias urbanas, são tão eleitorais (ou eleitoreiros) como gostam de tachar o PT, como nós, mas, para ganhar a eleição na Praça São Salvador, nas Laranjeiras, é necessário recitar Mao Tsé ou Trostky todo dia e dizer que o dia da revolução está chegando (amém!). Entre a verborragia acadêmica de um Nildo Ouriques, ou de um Babá, e a realidade, há uma relação tão íntima quanto a que Nise Yamaguchi tem com a prevenção da Covid. 

 Fui testemunha do ataque desvairado de setores da extrema-esquerda ao PT entre 2013 e 2015. Foram aliadas indefectíveis do golpe, ou alguém esquece dos discursos apaixonados da Luciana Genro pelo Sérgio Moro, ou das fotos dos componentes do apartamento da Paulinha pendurados no saco do Juiz Bretas? Parte deste povo evoluiu, outra parte ainda está preso em 2013. Aliás, vale à pena perguntar, os Black Bostas estão de férias? Porque foram ferozes inclusive contra o PT e a CUT (rasgaram nossas bandeiras, atiraram rojões contra nós, partiram para o confronto físico). Estas reservas pseudoanarquistas da reação foram incapazes de dar um só peteleco na fascistada vestida de verde e amarelo. Não me surpreenderia nada se ressurgirem das tumbas no dia 2 de janeiro de 2023. Junto com eles virão os Nildo Ouriques e os Babas da vida, gatinhos angorás durante os governos Temer e Bolsonaro, ferozes leões contra o PT, e que não se dão ao trabalho de organizar a classe trabalhadora, até para disputar (o que é do jogo político) a hegemonia com o Partido dos Trabalhadores, mas que preferem fazer o jogo da direita e fazer de tudo para balançar qualquer governo popular quando está no poder. Vomitam uma retórica de pré-revolução que desaparece quando a direita assume o poder. Escutei alguns cretinos dirigentes sindicais do Conlutas afirmarem abertamente que “não há clima para greve agora”, durante os 7 anos somados dos governos Temer e Bolsonaro, os mesmos que decretavam greve por tempo indeterminado, sob qualquer pretexto nos 13 anos de PT, e que ajudaram na pauta-bomba e no golpe contra a Dilma.

 Lula tem a seu favor a simpatia de 58 milhões de votos, a lembrança feliz dos seus 8 anos de governo, sua inconteste liderança internacional, a experiência larga como deputado e como presidente, mas navegará por mares nunca dantes navegados. É um governo em Estado de sítio permanente, que terá como tarefa não a de fazer avançar as pautas histórias de esquerda, mas sim desarmar todas as bombas golpistas, montadas pelo nazifascismo bolsonarista nestes últimos anos, e reconstruir o tecido social para que possamos dar um passo à frente já no próximo mandato. 

 Se queriam um governo radicalmente de esquerda esqueceram de dar a Lula um Congresso radicalmente de esquerda, caros camaradas. 

 Não se governa com o desejo, se governa com correlação de forças do mundo real, esta verdade de governar baseado na estrutura real do mundo faz parte de uma verdadeira análise marxista da política.